A carta abaixo foi enviada por mim à lista de e-mails do grupo professorestimor-2005 no Yahoo no dia em que completávamos 4 anos da partida do Brasil para Timor em 2005. As respostas emocionadas que recebi de muitos companheiros valeram pelas lágrimas que derramei enquanto escrevia esse texto.
O curioso foi que, até aquele momento, eu não cogitava voltar a Timor tão cedo - ao menos, não pela CAPES - e a publicação do Edital e consequentes seleção e etc, fez o final da minha carta tornar-se profético.
E aí? Quem me acompanha nas compras em Taibessi?
E aí? Quem me acompanha nas compras em Taibessi?
Assunto: [professorestimor-2005] 4 anos depois
Para: professorestimor-2005@yahoogrupos.com.br
Data: Segunda-feira, 30 de Março de 2009, 16:53
Há exatos 4 anos, iniciei meu dia de uma forma bastante fora da rotina diária de acordar e ir às pressas para uma sala de aula a 4km de distância de casa. Acordei e, sem pressa, comecei a jornada para uma sala de aula a mais de 15.000km.
Levantei bem cedo. Meu pai estava hospitalizado e não queria ir para o aeroporto sem me despedir dele. Mal sabia que seria a última vez que o veria. Papai perdeu a luta contra um câncer de próstata que o consumia há 5 anos enquanto eu estava em Timor. Foi duro saber da morte de meu pai por um telefonema internacional, mas o carinho dos amigos em Timor tornou esse fardo menos pesado. Escrevo isso e me lembro da Lúcia cantando "Oh, father!", da Madonna, no karaokê (ou karaóke) e meus olhos ficam embaçados.
Do hospital para o aeroporto e logo encontrei Sandra e Diane que já estavam despachando as malas. Sem tempo para lágrimas, pois havia muita coisa com que me preocupar, deixei para trás 47 anos da minha própria história para iniciar uma nova etapa, uma nova história que cada um de vocês aqui neste grupo ajudou a escrever e, portanto, já a conhecem e isso facilita tudo e me poupa qualquer extensa narrativa.
A história que vocês não conhecem, mas que estou certa que vão reconhecer um pouco das próprias histórias, foi a do retorno ao Brasil. Acho que me preparei tanto para ir para Timor que não me lembrei de preparar-me para voltar de Timor. Acreditei estar deixando um pouco de mim naquela meia-ilha longínqua, mas foi a ilha que cravou uma estaca em mim. Uma estaca, um mastro com aquela bandeira colorida, uma catana, não sei... só sei que até hoje, pensar em Timor me faz sofrer. Plagiando o poeta de Itabira, "Timor-Leste é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!".
Depois dos primeiros dias estranhando ruas calçadas e iluminadas, ônibus enormes, chuveiro quente, etc., começou o processo de retornar à velha vidinha. Mas como voltar? Estou certa de que essa retomada foi mais fácil para uns que para outros, e infelizmente me enquadro num caso bem difícil.
Talvez por ter saído de uma cidade tão grande, ou mesmo – sejamos francos – por ter tido sempre uma vida com tão poucos problemas, o contato com a realidade de um país tão pobre e sofrido tenha me causado um impacto tão imenso. Eu simplesmente tremia só de pensar em entrar numa sala de aula aqui no Brasil. Como ensinar algo a alguém se eu mal começara a aprender com a vida? Um sentimento de serviço inacabado tomou conta de mim e pensei diversas vezes em surtar e retornar a Timor com a cara e a coragem. Depois que o último grupão de brasileiros voltou ao Brasil, parece que me senti ainda pior. Se eu quisesse voltar, não haveria referência...
Daí veio o convite para o trabalho nas eleições pela ONU. Cheguei até a enviar a documentação, mas na hora de confirmar a data do embarque dei para trás. Naquele momento me achei cheia de motivos para fazer o que fiz, e depois amargurei-me de remorso. Isso foi no início de 2007, um ano depois da volta ao Brasil e, acreditem se puderem ou quiserem, ainda passei mais um ano perdida, sem rumo, arrependida por coisas que fiz e – pior – que deixei de fazer.
Só em abril de 2008, quando assumi o pequeno negócio que meu pai deixou e do qual eu tirara meu sustento nos últimos 24 meses sem erguer uma palha, comecei a recolher os cacos e retomar uma vida produtiva. Eu passara 2 anos mandando currículo para toda e qualquer posição em Timor – à exceção da Capes, claro – sem sucesso. Mandei currículo também para posições em outros pontos da Ásia e para postos na África, principalmente nos países lusófonos.
Cheguei até a conseguir algumas entrevistas, mas algo sempre travava e não fui selecionada para coisa alguma. Minto! Fui selecionada para um trabalho muito interessante da UNESCO pelo Norte e Nordeste do Brasil. Fui selecionada e logo descartada, já que, apesar de ter abandonado minha matrícula na Faetec, continuava sendo funcionária pública e constava no edital que servidores públicos não seriam aceitos. Foi a gota d'água. Fui trabalhar na loja da família e quando menos esperava, recebi uma convocação da Faetec para explicar a razão do abandono de emprego. Contei minha história e decidiram que eu retornaria sem problemas à minha antiga escola e que teria direito de pagar parceladamente à previdência pelos 4 anos "ausente" e contar esse tempo para minha aposentadoria. Desde o final do ano passado me divido entre empresária de jóias e professora de Matemática, e vou indo bem, obrigada... mas Timor não me larga de jeito algum...
Com tantas mudanças acontecendo, sendo chacoalhada da pasmaceira em que me permiti viver por tanto tempo, resolvi cortar diversos laços com o passado, relacionados ou não a Timor e numa dessas minhas ações, resolvi não avisar no Yahoo que cancelara meu email antigo na mudança do Velox para o Virtua. A verdade é que todas as vezes que apareciam mensagens – cada vez mais raras – vindas do grupo, eu tinha um aperto tão grande no peito que acabava me fazendo mais mal do que bem e deixei ficar assim por uns tempos. Na virada do ano, dei uma renovada na casa e mudei de quarto e nessa mudança coloquei um painel de fotos na parede, similar ao que eu tinha no meu quartinho em Dili. Lá, eu tinha fotos de todos que eu deixara no Brasil; agora, tenho uma foto com Tarcísio, Rodrigo, Raimundo, Chico Falcão, Jaílson e Gilmar no aeroporto em Johanesburgo; outra com Tarcísio, Ana Lúcia, Cid e Lotte no restaurante ao lado do "dedinho", além de fotos diversas de Michelle, Rama, Fátima, Simone e Levi, etc. Até o "Sugar", nosso amigo do cyber-café, aparece nas fotos. Num porta-retratos especial, a foto do grupo no momento da chegada com as crianças timorenses carregando as bandeiras do Brasil e de Timor. Pendurados tenho apenas dois taís: o que recebemos na chegada e o que recebi da Faculdade de Engenharia na minha festa de despedida.
Olho as fotos e me apavoro porque há nelas pessoas cujos nomes não consigo lembrar e preciso recorrer àquela velha lista de e-mails, telefones e datas de aniversário, lembram? Leio os nomes e me vêm tantas lembranças. A maioria muito boas, muitas bastante engraçadas, todas doídas. Saudade é um sentimento tão tolo que nem pode ser traduzido em outras línguas. Seja do que for que se sinta saudade, é passado, não volta. Se eu voltar agora a Timor, não vou mais ficar sentada à luz da lua ouvindo as histórias do Cid sobre Astorga, não vou mais brigar com a Ana porque a Bolinha sujou a sala de lama, não vou mais recolher a roupa suja do Tharsa e do Rai para lavar no tanque elétrico que a Lotte carregou na boléia do caminhão toda orgulhosa. Se eu for ao Exótica, não vou mais ver a Cléo e a Sandra Sá dançando nem vou ouvi-las desafinar no microfone desregulado do karaokê. A Lúcia e a Jana não vão mais estar no fim de tarde do Padi Dive para tomar uma Bintang comigo. E se eu comprar outra lambreta não vou ter mais o Raimundo como motorista. Não vou mais me deliciar com a "Special Pasta" do Saulo nem assistir "Sex and the City" no vídeo com a Michelle. Será que a Rama ainda vai tentar me ensinar a dança do ventre? Quem será que está jogando bola naquele campinho do quartel? Quanto estará custando o prato feito no "dedinho"?
Pois é... Timor não é apenas uma fotografia na parede, ou uma cigarreira de palha colorida adquirida no Arte Moris que não troco nem por uma Louis Vuitton (legítima, não de Bali), nem mesmo a música Vuli Ndlela que é o toque do meu celular para quando o Rai me telefona. Timor entrou em minha corrente sanguínea, tornou-se um apêndice em meu organismo que não consigo nem quero extirpar. Dói muito a lembrança, mas é uma dor que eu, masoquista, insisto em sentir. Ontem mesmo, saí toda orgulhosa para o supermercado com minha sacola de plástico trançado em lilás e amarelo. Evito a embalagem descartável e carrego um pedacinho de Taibessi na Zona Sul de Rio de Janeiro. Aliás, meus vestidos de Taibesse estão um pouco apertados, pois estou quase sete quilos mais gorda do que estava há quatro anos. Acho que estou precisando voltar lá para fazer umas compras. Alguém me acompanha?
Com saudade e carinho,
Telma
Levantei bem cedo. Meu pai estava hospitalizado e não queria ir para o aeroporto sem me despedir dele. Mal sabia que seria a última vez que o veria. Papai perdeu a luta contra um câncer de próstata que o consumia há 5 anos enquanto eu estava em Timor. Foi duro saber da morte de meu pai por um telefonema internacional, mas o carinho dos amigos em Timor tornou esse fardo menos pesado. Escrevo isso e me lembro da Lúcia cantando "Oh, father!", da Madonna, no karaokê (ou karaóke) e meus olhos ficam embaçados.
Do hospital para o aeroporto e logo encontrei Sandra e Diane que já estavam despachando as malas. Sem tempo para lágrimas, pois havia muita coisa com que me preocupar, deixei para trás 47 anos da minha própria história para iniciar uma nova etapa, uma nova história que cada um de vocês aqui neste grupo ajudou a escrever e, portanto, já a conhecem e isso facilita tudo e me poupa qualquer extensa narrativa.
A história que vocês não conhecem, mas que estou certa que vão reconhecer um pouco das próprias histórias, foi a do retorno ao Brasil. Acho que me preparei tanto para ir para Timor que não me lembrei de preparar-me para voltar de Timor. Acreditei estar deixando um pouco de mim naquela meia-ilha longínqua, mas foi a ilha que cravou uma estaca em mim. Uma estaca, um mastro com aquela bandeira colorida, uma catana, não sei... só sei que até hoje, pensar em Timor me faz sofrer. Plagiando o poeta de Itabira, "Timor-Leste é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!".
Depois dos primeiros dias estranhando ruas calçadas e iluminadas, ônibus enormes, chuveiro quente, etc., começou o processo de retornar à velha vidinha. Mas como voltar? Estou certa de que essa retomada foi mais fácil para uns que para outros, e infelizmente me enquadro num caso bem difícil.
Talvez por ter saído de uma cidade tão grande, ou mesmo – sejamos francos – por ter tido sempre uma vida com tão poucos problemas, o contato com a realidade de um país tão pobre e sofrido tenha me causado um impacto tão imenso. Eu simplesmente tremia só de pensar em entrar numa sala de aula aqui no Brasil. Como ensinar algo a alguém se eu mal começara a aprender com a vida? Um sentimento de serviço inacabado tomou conta de mim e pensei diversas vezes em surtar e retornar a Timor com a cara e a coragem. Depois que o último grupão de brasileiros voltou ao Brasil, parece que me senti ainda pior. Se eu quisesse voltar, não haveria referência...
Daí veio o convite para o trabalho nas eleições pela ONU. Cheguei até a enviar a documentação, mas na hora de confirmar a data do embarque dei para trás. Naquele momento me achei cheia de motivos para fazer o que fiz, e depois amargurei-me de remorso. Isso foi no início de 2007, um ano depois da volta ao Brasil e, acreditem se puderem ou quiserem, ainda passei mais um ano perdida, sem rumo, arrependida por coisas que fiz e – pior – que deixei de fazer.
Só em abril de 2008, quando assumi o pequeno negócio que meu pai deixou e do qual eu tirara meu sustento nos últimos 24 meses sem erguer uma palha, comecei a recolher os cacos e retomar uma vida produtiva. Eu passara 2 anos mandando currículo para toda e qualquer posição em Timor – à exceção da Capes, claro – sem sucesso. Mandei currículo também para posições em outros pontos da Ásia e para postos na África, principalmente nos países lusófonos.
Cheguei até a conseguir algumas entrevistas, mas algo sempre travava e não fui selecionada para coisa alguma. Minto! Fui selecionada para um trabalho muito interessante da UNESCO pelo Norte e Nordeste do Brasil. Fui selecionada e logo descartada, já que, apesar de ter abandonado minha matrícula na Faetec, continuava sendo funcionária pública e constava no edital que servidores públicos não seriam aceitos. Foi a gota d'água. Fui trabalhar na loja da família e quando menos esperava, recebi uma convocação da Faetec para explicar a razão do abandono de emprego. Contei minha história e decidiram que eu retornaria sem problemas à minha antiga escola e que teria direito de pagar parceladamente à previdência pelos 4 anos "ausente" e contar esse tempo para minha aposentadoria. Desde o final do ano passado me divido entre empresária de jóias e professora de Matemática, e vou indo bem, obrigada... mas Timor não me larga de jeito algum...
Com tantas mudanças acontecendo, sendo chacoalhada da pasmaceira em que me permiti viver por tanto tempo, resolvi cortar diversos laços com o passado, relacionados ou não a Timor e numa dessas minhas ações, resolvi não avisar no Yahoo que cancelara meu email antigo na mudança do Velox para o Virtua. A verdade é que todas as vezes que apareciam mensagens – cada vez mais raras – vindas do grupo, eu tinha um aperto tão grande no peito que acabava me fazendo mais mal do que bem e deixei ficar assim por uns tempos. Na virada do ano, dei uma renovada na casa e mudei de quarto e nessa mudança coloquei um painel de fotos na parede, similar ao que eu tinha no meu quartinho em Dili. Lá, eu tinha fotos de todos que eu deixara no Brasil; agora, tenho uma foto com Tarcísio, Rodrigo, Raimundo, Chico Falcão, Jaílson e Gilmar no aeroporto em Johanesburgo; outra com Tarcísio, Ana Lúcia, Cid e Lotte no restaurante ao lado do "dedinho", além de fotos diversas de Michelle, Rama, Fátima, Simone e Levi, etc. Até o "Sugar", nosso amigo do cyber-café, aparece nas fotos. Num porta-retratos especial, a foto do grupo no momento da chegada com as crianças timorenses carregando as bandeiras do Brasil e de Timor. Pendurados tenho apenas dois taís: o que recebemos na chegada e o que recebi da Faculdade de Engenharia na minha festa de despedida.
Olho as fotos e me apavoro porque há nelas pessoas cujos nomes não consigo lembrar e preciso recorrer àquela velha lista de e-mails, telefones e datas de aniversário, lembram? Leio os nomes e me vêm tantas lembranças. A maioria muito boas, muitas bastante engraçadas, todas doídas. Saudade é um sentimento tão tolo que nem pode ser traduzido em outras línguas. Seja do que for que se sinta saudade, é passado, não volta. Se eu voltar agora a Timor, não vou mais ficar sentada à luz da lua ouvindo as histórias do Cid sobre Astorga, não vou mais brigar com a Ana porque a Bolinha sujou a sala de lama, não vou mais recolher a roupa suja do Tharsa e do Rai para lavar no tanque elétrico que a Lotte carregou na boléia do caminhão toda orgulhosa. Se eu for ao Exótica, não vou mais ver a Cléo e a Sandra Sá dançando nem vou ouvi-las desafinar no microfone desregulado do karaokê. A Lúcia e a Jana não vão mais estar no fim de tarde do Padi Dive para tomar uma Bintang comigo. E se eu comprar outra lambreta não vou ter mais o Raimundo como motorista. Não vou mais me deliciar com a "Special Pasta" do Saulo nem assistir "Sex and the City" no vídeo com a Michelle. Será que a Rama ainda vai tentar me ensinar a dança do ventre? Quem será que está jogando bola naquele campinho do quartel? Quanto estará custando o prato feito no "dedinho"?
Pois é... Timor não é apenas uma fotografia na parede, ou uma cigarreira de palha colorida adquirida no Arte Moris que não troco nem por uma Louis Vuitton (legítima, não de Bali), nem mesmo a música Vuli Ndlela que é o toque do meu celular para quando o Rai me telefona. Timor entrou em minha corrente sanguínea, tornou-se um apêndice em meu organismo que não consigo nem quero extirpar. Dói muito a lembrança, mas é uma dor que eu, masoquista, insisto em sentir. Ontem mesmo, saí toda orgulhosa para o supermercado com minha sacola de plástico trançado em lilás e amarelo. Evito a embalagem descartável e carrego um pedacinho de Taibessi na Zona Sul de Rio de Janeiro. Aliás, meus vestidos de Taibesse estão um pouco apertados, pois estou quase sete quilos mais gorda do que estava há quatro anos. Acho que estou precisando voltar lá para fazer umas compras. Alguém me acompanha?
Com saudade e carinho,
Telma
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